O efeito ozempic: quando a inovação, ética e impacto econômico e social se encontram em nossa sociedade
- Anna Flavia Ribeiro
- 15 de mai.
- 13 min de leitura
Atualizado: 27 de mai.

Abalo nas empresas tradicionais de controle de peso
A introdução de medicamentos como Ozempic, Wegovy (semaglutida) e Mounjaro (tirzepatida) está transformando o mercado de emagrecimento. Empresas de dietas e programas de perda de peso que dominaram esse setor por décadas enfrentam queda de receitas e mudanças estratégicas bruscas. O Vigilantes do Peso viu suas ações despencarem de mais de US$100 em 2018 para menos de US$1 em 2024, e acumular mais de US$1 bilhão em dívidas. Em maio de 2025, a companhia entrou com pedido de recuperação judicial (Chapter 11) para eliminar US$1,15 bilhão em dívidas e acelerar sua transição de um modelo baseado em dietas para um modelo de telemedicina focado em prescrição de fármacos.
Essa mudança de modelo de negócios ficou evidente já em 2023, quando o Vigilantes do Peso pagou US$106 milhões pela aquisição da startup Sequence – um serviço de telessaúde voltado a obtenção de receitas de Ozempic, Wegovy, Trulicity e outros medicamentos GLP-1. Desde então, “dezenas de milhares” de clientes da empresa passaram a obter prescrições de GLP-1 pelos médicos do programa. O Vigilantes do Peso também lançou um programa de acompanhamento específico para usuários desses remédios, ensinando sobre nutrição adequada (priorizando proteínas e hidratação) e exercícios para minimizar efeitos colaterais como perda de massa muscular. Segundo Gary Foster, diretor científico da WW, “não é correto dizer que [os GLP-1] são o caminho fácil... quando se precisa de tratamentos biológicos, também é preciso tratamento comportamental” para sucesso duradouro. Em outras palavras, a empresa tenta se posicionar como complemento aos remédios, e não mais como alternativa a eles.
Apesar desse pivô estratégico, os resultados financeiros da Vigilantes do Peso continuaram sofrendo: o faturamento caiu 10% no primeiro trimestre de 2025 e a empresa registrou prejuízo ajustado de US$0,47 por ação. Por outro lado, as assinaturas do novo serviço clínico (vinculado a medicamentos) cresceram 57% ano contra ano, alcançando US$29,5 milhões no trimestre – um sinal de que a demanda pelos fármacos compensa em parte a debandada de clientes dos métodos tradicionais. A realidade, porém, é que o Vigilantes do Peso luta para competir em um mercado de emagrecimento cada vez mais dominado pelos fármacos. Em 2024, a empresa perdeu até mesmo sua garota-propaganda mais famosa: Oprah Winfrey deixou o conselho diretivo após revelar que estava usando um medicamento para perder peso, o que evidenciou o desencanto com as dietas convencionais. Executivos do setor já falam abertamente em “fim da cultura da dieta”. A diretora médica do app Noom, Dra. Linda Anegawa, afirmou: “provavelmente estamos vendo o ocaso das dietas” como método de emagrecimento. A própria CEO da companhia, Sima Sistani, sugeriu que a era Ozempic pode representar “o fim do ‘diet culture’” – indicando que, se a ciência oferece soluções eficazes, as pessoas não vão mais aderir a regimes alimentares penosos.
Outras empresas históricas de controle de peso seguem caminho parecido. O aplicativo Noom, conhecido pelo enfoque psicológico no emagrecimento, lançou em 2023 o Noom Med, serviço pago (~US$120 mensais) que conecta usuários a médicos para prescrição de Wegovy, Saxenda, Ozempic e Mounjaro. Com essa nova classe de drogas, os resultados de perda de peso são muito melhores, e nós ouvimos nossos pacientes”, disse Linda Anegawa, diretora médica da Noom. Ela enfatiza, porém, que sem mudança de comportamento, o sucesso dificilmente se mantém: “o emagrecimento sustentável não é alcançável sem ancoragem em mudança comportamental”. Ou seja, Noom e Vigilantes do Peso agora se posicionam não mais como alternativas concorrentes aos remédios, mas sim como aliadas – vendendo programas de apoio que prometem garantir hábitos saudáveis paralelamente ao uso dos fármacos.
Efeitos em todos os mercados
Alguns dos grandes “perdedores” dessa tendência são negócios tradicionais que não conseguiram se adaptar. Em maio de 2023, a rede de clínicas Jenny Craig, famosa pelas dietas com comida pré-pronta, anunciou falência e fechou operações nos EUA. Analistas atribuem o colapso à dificuldade de competir num cenário em que os clientes “trocam shakes e contagem de calorias por injeções milagrosas” de GLP-1. Até gigantes do setor alimentício sentiram o golpe: o CEO da Novo Nordisk (fabricante do Ozempic) revelou que executivos de empresas de alimentos o procuraram “apavorados” com o potencial dos remédios em reduzir o consumo de comidas indulgentes. Em resposta, algumas empresas de alimentos e suplementos estão reposicionando produtos para essa nova era. A Atkins Nutritionals, conhecida pela dieta de baixo carboidrato, agora se promove como “sua aliada na nova era do emagrecimento” e enfatiza shakes hiperprotéicos para usuários de GLP-1 manterem a massa muscular. A Nestlé lançou nos EUA a linha de congelados Vital Pursuit, voltada a quem faz uso de Ozempic e similares – porções menores e balanceadas para “acompanhar” a medicação. A Nestlé citou projeções de que o número de americanos usando GLP-1 pode chegar a 30 milhões até 2030 (cerca de 9% da população), um mercado bilionário que nenhuma empresa de alimentação quer ignorar.

No segmento de academias e fitness, a reação inicial foi de alarme – temia-se que as “injeções de emagrecimento” fizessem as pessoas abandonarem exercícios. A curto prazo, houve reflexo no mercado de ações: papéis de academias como Planet Fitness oscilaram em 2023 conforme investidores avaliavam o possível efeito Ozempic na frequência de alunos. Porém, dados recentes e movimentos estratégicos sugerem um cenário mais complexo. Paradoxalmente, o boom dos GLP-1 pode até beneficiar academias, atraindo um novo público. “Por mais contraintuitivo que pareça, acho que [Ozempic] traz novos alunos”, diz Simeon Siegel, analista que acompanha redes de fitness. Segundo ele, pessoas antes sedentárias e com obesidade, ao perder parte do peso com ajuda do remédio, ganham confiança para ingressar numa academia – muitas vezes tornando-se “fanáticas por treino” ao descobrir a capacidade de seu novo corpo.
As grandes redes de academias estão se adaptando rapidamente. A luxuosa Life Time Fitness inaugurou em 2024 clínicas médicas internas (chamadas Miora) em suas unidades, oferecendo prescrição de GLP-1 e terapias complementares como hidratação endovenosa e planos de desempenho personalizados. A Life Time também treinou todos os seus 3.500 personal trainers em um programa específico para clientes que usam esses remédios, ensinando-os a ajustar os treinos para minimizar perda muscular e preparar o aluno para a eventual saída do medicamento. “Se conseguirmos engajar mesmo uma fração dos potenciais alunos com essa abordagem para quem usa GLP-1, é uma oportunidade enorme para a empresa”, disse Cliff Edberg, diretor sênior da iniciativa Miora. Concorrentes adotaram medidas parecidas: a Equinox treinou instrutores para atender clientes medicados, e a Gold’s Gym em Los Angeles anunciou que seus profissionais estão “prontos para auxiliar os alunos que usam drogas GLP-1”– inclusive recomendando exames regulares de composição corporal para monitorar a massa magra. Em suma, o setor fitness não pretende ficar para trás: em vez de perder clientes, as academias estão incorporando os remédios em seus serviços, vendendo acompanhamento especializado para quem faz uso das “canetas” de emagrecimento.
Reações na nutrição, estética e psicologia
A ascensão vertiginosa dos tratamentos farmacológicos para obesidade também gera debates e rearranjos nas profissões de nutrição, estética e psicologia. Muitos nutricionistas clínicos relatam um misto de preocupação ética e necessidade de adaptação. Por um lado, há receio de que a medicação substitua completamente a reeducação alimentar – o que, segundo especialistas, seria um erro. “O Ozempic não faz mágica”, esclarece o endocrinologista Fernando Gerchman, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. Ele enfatiza que pacientes usando semaglutida devem combinar o remédio com mudança de estilo de vida, incluindo atividade física e dieta balanceada, para evitar perda excessiva de massa muscular e flacidez de pele. Médicos e nutricionistas alertam que sem essa abordagem multidisciplinar, o peso perdido pode voltar após a interrupção do medicamento. “Muito mais do que pensar em soluções medicamentosas que a longo prazo não serão eficazes, é essencial adotar mudanças no estilo de vida”, defende a PhD Annie Bello, em artigo direcionado a nutricionistas. Ela recomenda que todo tratamento com GLP-1 envolva uma equipe com médico, nutricionista, psicólogo e educador físico, para garantir resultados seguros e sustentáveis.
Esse discurso reflete uma preocupação ética central: tratar obesidade apenas com um fármaco, sem abordar hábitos alimentares e saúde mental, seria tratar o sintoma e não a causa. Nutricionistas comportamentais ressaltam que muitos pacientes com sobrepeso têm histórico de compulsão alimentar ou “fome emocional”, e um remédio supressor de apetite não resolve esses gatilhos psicológicos. Ao contrário, pode até agravá-los se usado de forma indiscriminada. Uma carta conjunta da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e da Sociedade de Diabetes, divulgada em 2024, alertou que o uso amplo de agonistas GLP-1 por pessoas sem indicação clínica apropriada levanta preocupações quanto à saúde pública e à disponibilidade do medicamento para quem realmente necessita. Essas entidades apoiaram medidas regulatórias mais rígidas – como a exigência de retenção da receita médica nas farmácias – para coibir a banalização das “canetas emagrecedoras”. Segundo a Anvisa, houve aumento de notificações de eventos adversos ligados ao uso descontrolado desses remédios, especialmente entre pessoas que os utilizaram apenas com finalidade estética e sem acompanhamento médico. Entre os efeitos relatados estão náuseas severas, distúrbios gastrointestinais e sinais de desregulação metabólica. Profissionais também apontam risco de agravamento de transtornos alimentares preexistentes: um indivíduo com distúrbio de imagem corporal ou comportamento alimentar compulsivo pode ter esses problemas acentuados pelo uso impróprio do medicamento.

No campo da estética, os impactos são ambíguos. Inicialmente poderia se supor que cirurgias bariátricas e procedimentos estéticos para emagrecimento perderiam espaço. Porém, observa-se um efeito cascata: pacientes que emagrecem muito rápido com os GLP-1 frequentemente buscam cirurgias plásticas para remover excesso de pele ou retomar a aparência jovial. Médicos nos EUA relatam um boom de procedimentos como abdominoplastias, lifting de coxas, braquioplastias (retirada de pele dos braços) e preenchimentos faciais para tratar a chamada “face Ozempic”– termo popular para o rosto abatido e envelhecido pela perda acelerada de gordura subcutânea. “As pessoas estão perdendo 20, 30, até 45 kg com a medicação. Certamente vão ter pele sobrando”, explica a cirurgiã plástica Jennifer Hamilton. Essa demanda reprimida está convertendo a febre dos injetáveis em um filão de ouro para os cirurgiões plásticos, conforme destacou reportagem da Bloomberg. Dados da Sociedade Americana de Cirurgia Plástica indicam forte alta nos procedimentos pós-grande perda de peso desde 2022, coincidindo com a popularização de Ozempic e Wegovy. Muitos pacientes, após atingir a meta na balança, ficam decepcionados ao notar que não atingiram a meta estética – o corpo magro vem acompanhado de pele flácida e traços cadavéricos. Nesses casos, a cirurgia plástica é vista como “toque final” da transformação: removendo a pele excedente e reposicionando os tecidos para adequar ao novo contorno corporal. Clínicas de estética também passaram a oferecer preenchimentos dérmicos e estimuladores de colágeno especificamente para combater os efeitos da perda de volume facial acelerada. Ou seja, ao invés de reduzirem a procura por procedimentos estéticos, os remédios de emagrecimento simplesmente mudaram o foco da demanda: menos lipoaspirações, mais liftings e reparos de pele.
Naturalmente, há debates éticos intensos: médicos devem prescrever semaglutida para quem não é obeso mórbido? É correto alguém recorrer a um remédio potente (originalmente desenvolvido para diabetes) apenas para fins cosméticos? Endocrinologistas como Gerchman defendem que, para indivíduos com obesidade clinicamente definida ou comorbidades, os benefícios superam riscos – estudos mostram redução de 15% a 20% do peso e melhora de parâmetros de saúde. Contudo, para pessoas com sobrepeso leve, a indicação é controversa. No Brasil, a semaglutida injetável ainda não possui aprovação regulatória para emagrecimento estético (apenas para diabetes tipo 2), de modo que toda prescrição para perda de peso é “off label” e fica a critério do médico e paciente, com riscos assumidos. Conselhos profissionais têm orientado seus membros a agirem com cautela. Muitos nutricionistas preferem manter enfoque em reeducação alimentar e saúde metabólica, usando a medicação apenas como coadjuvante quando prescrita por um médico. Já psicólogos clínicos estão atualizando suas práticas para lidar com a nova realidade: pacientes que emagrecem rapidamente podem precisar de apoio para redefinir sua autoimagem e rotina. A “identidade de pessoa acima do peso”, que muitos carregavam por anos, pode dar lugar a ansiedade em manter o novo corpo ou medo de engordar de novo – aspectos emocionais que requerem intervenção terapêutica. Além disso, surgem relatos de efeitos colaterais neuropsiquiátricos dos agonistas GLP-1 em casos isolados (como aumento de ansiedade ou oscilação de humor), embora ainda sem comprovação causal direta. Esses sinais fazem com que psiquiatras e psicólogos defendam um acompanhamento de saúde mental para pacientes em uso prolongado. Em última instância, a visão que ganha força é tratar a obesidade como doença crônica multifatorial: combinando medicamento, dieta, exercícios e terapia psicológica para resultados de longo prazo. Como resumiu a psicóloga americana Kimberly Gudzune, especializada em emagrecimento, “não existe fórmula mágica; mesmo com o melhor remédio, o paciente precisa reformular mente e hábitos para que o peso perdido não volte”.
Quem são os usuários dos remédios GLP-1?
A adoção dos medicamentos para emagrecer revela diferenças marcantes entre grupos sociais. Pesquisas recentes nos Estados Unidos mostram que o uso das “injeções de Ozempic” se espalhou rapidamente em diversos estratos, mas de forma desigual. Uma sondagem nacional da Kaiser Family Foundation apontou que 12% dos adultos norte-americanos – cerca de 1 em cada 8 – já tomaram algum agonista GLP-1 (seja para perda de peso, diabetes ou outra indicação). Aproximadamente 6% dos adultos relatam uso atual desses fármacos. Entre os usuários, há dois perfis principais: a maioria (61%) buscou tratar condições crônicas (principalmente diabetes tipo 2 ou doença cardíaca, que também se beneficiam dos GLP-1) – muitas vezes com o bônus de perder peso –, enquanto 38% usaram unicamente para emagrecimento estético, sem indicação médica de doença. Ou seja, cerca de 4 em cada 10 usuários estão acessando essas drogas apenas para fins de peso corporal, o que reforça seu apelo cosmético.

Questões de gênero e idade influenciam a adoção. Historicamente, mulheres são as maiores consumidoras de produtos e métodos de emagrecimento – tendência que se reflete também com os GLP-1. Antes mesmo da semaglutida, uma pesquisa da KFF indicava que mulheres tinham duas vezes mais probabilidade que homens de relatar uso de medicamentos prescritos para perder peso (18% delas já haviam utilizado, contra 8% dos homens). Com os novos fármacos, essa disparidade de gênero persiste, embora atenuada pelo fato de muitos homens estarem recebendo Ozempic para tratamento de diabetes. De todo modo, nas clínicas de obesidade observa-se maior procura feminina quando o objetivo é puramente estético, enquanto homens tendem a chegar por indicação médica (após um diagnóstico de pré-diabetes, por exemplo). Faixa etária é outro divisor: adultos mais jovens (< 45 anos) mostram-se mais inclinados a usar semaglutida por motivos estéticos, enquanto idosos utilizam quase exclusivamente quando há indicação de saúde. Nos EUA, apenas 1% dos maiores de 65 anos relatam ter usado GLP-1 para perder peso sem necessidade médica, reflexo também da política: o Medicare (seguro sênior) não cobre remédios para emagrecimento puramente estético. Já entre adultos abaixo de 65 com sobrepeso, o interesse é alto – pesquisas Pew mostram que dois terços das mulheres americanas dizem que tentariam um fármaco de emagrecimento se pudessem, contra cerca de metade dos homens.
A classe social e o acesso ao sistema de saúde surgem como fatores decisivos na utilização dos GLP-1. Esses medicamentos têm custo elevado, em torno de US$1.000 por mês nos EUA sem cobertura, e cerca de R$800 a R$3.000 por caixa no Brasil. Não surpreende que, nos primeiros meses do “boom”, eles tenham se popularizado entre celebridades, executivos e pessoas de alto poder aquisitivo. Ficou famoso o caso da cantora Jojo Todynho, que em 2023 divulgou nas redes sociais ter emagrecido usando Ozempic – aumentando a curiosidade do público brasileiro sobre o fármaco. Nos EUA, personalidades como Elon Musk admitiram publicamente o uso de Wegovy para perda de peso, e rumores apontam que estrelas de Hollywood recorreram às injeções antes de eventos como o Oscar. Esse caráter aspiracional fomentou um mercado clandestino e elitizado: algumas clínicas estéticas vendiam aplicações off label a clientes endinheirados, enquanto no outro extremo surgiam fórmulas manipuladas ilegais sendo comercializadas na internet.
Hoje, com mais conhecimento e disponibilidade, o perfil de usuários se diversifica. Ainda assim, barreiras financeiras limitam o acesso amplo. Metade dos americanos que já usaram GLP-1 relatou dificuldade em pagar pelo tratamento, mesmo possuindo seguro de saúde privado. Entre aqueles sem cobertura, muitos interromperam o uso por não conseguir bancar do próprio bolso continuamente. Essa é uma das razões por que **até 50-75% dos pacientes param de usar o remédio dentro de um ano – a alta taxa de descontinuação apontada pela Dra. Sadiya Khan em artigo no JAMA. O custo é citado como o principal motivo, seguido pela percepção equivocada de que o medicamento seria um curso temporário, e não um tratamento de manutenção. “Muita gente pensa que pode parar de tomar assim que emagrecer, ou quem usou por vaidade acha que não precisa ser terapia crônica” – fatores que contribuem para o abandono e, muitas vezes, para o efeito rebote de recuperar peso. Especialistas enfatizam que, para obesos graves, a semaglutida deve ser encarada como um tratamento contínuo, tal qual um anti-hipertensivo para controlar pressão: se suspenso, o problema retorna. Isso traz desafios tanto médicos quanto sociais – pois manter milhões de pessoas em medicação contínua de alto custo implica impactos nos sistemas de saúde e seguros. Uma estimativa publicada no New England Journal of Medicine sugere que, se todos os quase 20 milhões de americanos obesos elegíveis no Medicare recebessem GLP-1, o gasto anual seria de astronômicos US$268 bilhões, valor insustentável sem profundas mudanças nas políticas de saúde.

No Brasil, a adoção dos GLP-1 também cresce, porém com nuances locais. O SUS (sistema público) não fornece rotineiramente esses medicamentos para obesidade, restringindo-os a casos de diabetes tipo 2 refratários. Assim, o acesso fica restrito à rede privada e aos que podem pagar. Operadoras de planos de saúde reportam aumento de beneficiários buscando cobertura para Wegovy ou similares, embora muitas apólices não cubram tratamento para emagrecimento sem comorbidades. A alta demanda inclusive gerou, em 2023, escassez temporária de Ozempic nas farmácias brasileiras, conforme relatos, pois o consumo off label superou o previsto para pacientes diabéticos. Em resposta, a Anvisa implementou em 2023 a exigência de retenção da receita médica na venda das canetas de semaglutida, tentando frear a automedicação. Ainda assim, clínicas particulares passaram a oferecer programas de emagrecimento com GLP-1, e profissionais de saúde relatam um crescimento na medicalização da perda de peso entre as classes média e alta urbanas.
Em termos sociodemográficos, médicos notam que mulheres de 30 a 50 anos, com IMC na faixa de sobrepeso ou obesidade leve, formam um grande contingente de usuários buscando fins estéticos no Brasil – muitas vezes influenciadas por redes sociais e pela promessa de um “atalho” em vez de dietas restritivas. Já pacientes de baixa renda e com obesidade severa enfrentam dificuldades para acessar esses tratamentos de última geração, perpetuando inequidades: justamente quem mais sofre com obesidade (populações de menor renda, frequentemente) tende a ficar de fora da revolução farmacológica, seja por custo ou falta de acompanhamento médico regular. Isso levanta questões de saúde pública sobre como democratizar o acesso a medicamentos comprovadamente eficazes na redução de peso e melhoria de saúde metabólica. Especialistas sugerem que, no futuro, à medida que mais genéricos chegarem e os preços reduzam, programas governamentais poderiam incorporar os GLP-1 em protocolos de tratamento da obesidade mórbida, assim como hoje se distribuem remédios para diabetes e hipertensão.
Em suma, os medicamentos à base de GLP-1 já estão provocando mudanças profundas na economia e na sociedade ligadas ao peso. Um novo equilíbrio começa a se desenhar: indústrias inteiras – de vigilantes do peso a academias e cirurgias plásticas – recalibram seus modelos de negócio; profissionais de saúde ajustam suas abordagens éticas e terapêuticas; e o público, de celebridades a pessoas comuns, passa a encarar a obesidade sob um prisma médico, não mais apenas moral. As “miracle drugs” do emagrecimento oferecem esperança a muitos, mas também escancaram desafios: da regulação e equidade de acesso aos cuidados multidisciplinares necessários para que o magro obtido na seringa não se perca no prato. Como toda revolução, esta traz ganhos e colisões – e só o tempo dirá se estaremos inaugurando uma era de corpos mais saudáveis ou apenas trocando um conjunto de problemas por outros novos.
Fontes: Estudos e reportagens da Bloomberg, NPR, Los Angeles Times, Quartz, Kaiser Family Foundation, JAMA, Estadão e GZH, além de dados de associações profissionais (SBEM, Anvisa).
Assinado: Anna Flavia Ribeiro, Community & Experience Manager da Rocketbase - Venture Studio
Muito relevante, parabéns!!
👏👏👏👏👏👏